segunda-feira, 20 de julho de 2009

A Lua e o futuro

Hoje se comemora os quarenta anos da chegada do Homo sapiens à Lua. Geralmente também é considerado o término da "Corrida Espacial" entre Estados Unidos e União Soviética, iniciada em 1957 com o lançamento do primeiro satélite artificial, o Sputnik. Outras coisas importantes foram feitas em termos de exploração espacial após essa data, como a Mir e o Skylab, a mensagem de Arecibo, o Hubble e as sondas Galileu, sem esquecer da Estação Espacial Internacional, talvez mais significativa em termos de pesquisa científica do que todos os anteriores.

Mas, em minha opinião, falta algo da emoção desses primeiros projetos, como se o ponto de convergência tivesse passado e agora a exploração espacial se resuma a algumas melhorias e especializações, sem um grande projeto que mobilize o público e crie novos mitos e novas idealizações. Talvez seja por isso que, ultimamente, a literatura de ficção científica esteja dormente, sem grandes obras novas, apenas uma ou outra releitura de obras antigas.

Não vou me estender, já que o objetivo é só lembrar da importância dessa data, mas registro aqui minha esperança de que o projeto de exploração de Marte seja levado adiante e que uma futura missão tripulada ao planeta vermelho reanime a emoção da exploração espacial e traga uma nova leva de sonhos e projetos para o futuro.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Socialismo e mitos a respeito

Já faz um tempo que não escrevo nada no blog, então é hora de tirar o atraso. Estava conversando com uns amigos outro dia e, como é de costume, as questões políticas e sociais se enfiaram no meio da discussão. Uma coisa que já pude notar dessas discussões é o quanto a temática do socialismo e dos movimentos e práticas socialistas é quase completamente desconhecida ou encarada de forma absolutamente fantasiosa pela maioria das pessoas, inclusive por alguns que lhe expressam simpatia e até mesmo se declaram comunistas ou marxistas. Afirmações que já ouvi de meus companheiros a esse respeito: "o que tivemos na União Soviética e em Cuba não é socialismo", "o socialismo precisa contar com a bondade das pessoas para ser implantado", "o socialismo não permite o avanço tecnológico", "os socialistas utópicos imaginavam sociedades impossíveis, já Marx foi científico". Considero todas essas afirmações extremamente equivocadas, em um nível ou outro, e creio que de uma forma geral elas demonstram concepções fictícias do socialismo, sem muita preocupação de historicização do mesmo ou diálogo com a realidade.

Fiquei matutando sobre a origem do problema e imagino que venha basicamente de nosso precário sistema de ensino, onde os conceitos são lançados aos alunos sem nenhuma preocupação com a discussão ou contextualização dos mesmos, e também do contato (maléfico, na minha opinião) com a mídia "imparcial" de nosso país (Veja e Caros Amigos, para citar dois exemplos de extremófilos opostos), que se diz "informativa", mas de fato exerce um confuso papel entre a militância desregrada e a desinformação irresponsável. Ter a escola e a mídia como principais fontes de informação já fez horrores com nossa intelectualidade passada, atual e vindoura, e penso ser muito deprimente que poucos brasileiros realmente procurem boa literatura ou bons documentários sobre o tema, já que isso aguça o espírito crítico de todos nós, e espírito crítico é essencial para a construção da democracia.

A temática "socialismo" é absurdamente vasta, tanto quanto a temática "capitalismo", então só vou tocar em alguns pontos que acredito serem os mais confusos, pelo menos do ponto de vista da classe média-alta com a qual convivo.

Primeiro: o socialismo é um sistema econômico, muito mais do que um sistema social. Nunca foi muito da cabeça de nenhum pensador socialista dizer aos militantes como eles deveriam viver, que religião eles deveriam abraçar ou o que deveriam vestir e comer. Embora muitos líderes socialistas mais autoritários (como Stalin e Pol Pot) sonhassem em controlar cada milímetro do cotidiano dos cidadãos, a abordagem básica de todas as teorias socialistas sempre foi de origem político-econômica:

A propriedade privada dos meios de produção e dos bens de primeira necessidade (vestuário, moradia, alimentação, educação, informação) acaba por gerar situações de injustiça e escassez, uma vez que veta o acesso do grosso da população a produtos dos quais ela necessita para sua sobrevivência, portanto, o acesso a esses produtos deve ser garantido, de uma forma ou de outra, a todos que verguem o título de 'cidadão'.

Notem que, diante dessa diretriz básica, várias correntes de pensamento podem ser geradas (e de fato foram). Um dos mitos comuns é que em uma socidade socialista não existiria nenhum direito a propriedade privada, que até o ato de adquirir uma caneta como sua propriedade particular seria vetado. Não procede, uma vez que o socialismo só se interessa pelo acesso público aos meios de produção (leia-se: indústrias, bancos, produtoras agrícolas e instituições de financiamento) e em um mecanismo através do qual fiscalizar a formação dos cidadãos (Proudhon, um dos grandes pensadores socialistas, era inclusive a favor de uma rede privada de ensino, contanto que ela estivesse sujeita a algumas direrizes quanto aos métodos pedagógicos). Assim, a propriedade privada e o espaço privado continuariam existindo dentro de uma sociedade socialista, o que seria coletivizado seriam só os meios de produção e, talvez, distribuição de bens de primeira necessidade.

Segundo: o socialismo não exige, nem nunca exigiu, a passividade ou docilidade dos seres humanos. Quem exige isso é o cristianismo, que propõe um pós-vida utópico no qual os conflitos desaparecem e todos vivem em paz e harmonia eterna. O socialismo exige o exato oposto disso, uma vez que todas as teorias socialistas são, mesmo que de forma implícita, fundadas sobre a luta de classes e a necessidade de se derrubar a ordem vigente, percebida como injusta, ilógica, ineficiente ou inferiorizante (termos utilizados, respectivamente, por Marx, Fourrier, Saint-Simon e Stirner, para descrever o capitalismo). Alguns pensadores, como Marx, mencionam um futuro idílico em um paraíso pós-socialista onde as classes e o Estado cessaram de existir, o que talvez tenha reforçado a visão popular de que os membros de uma sociedade socialista precisariam ser naturalmente bondosos e altruístas, como os santos do paraíso cristão.

Nada poderia estar mais distante da realidade se tomarmos como exemplo a concepção interessantíssima de Max Stirner, para quem a sociedade capitalista incita a fraqueza e a preguiça nos seres humanos por eliminar a competitividade (sim, vejam vocês: o capitalismo acusado de não ser competitivo). Por criar uma sociedade estamental, onde os ricos são sempre ricos e os pobres nunca têm uma chance real de ascender economicamente, o capitalismo geraria uma situação de ociosidade e indolência que enfraquece o caráter humano. O socialismo seria preferível pois incita uma cooperação tácita entre as pessoas e instituições na busca de uma situação comum de conforto e oportunidades, não por motivos altruístas, e sim porque o interesse individual beneficia-se da estabilidade coletiva. Nas palavras de Stirner, a sociedade socialista seria uma livre associação de egoístas, cada um preocupado com seu próprio bem-estar, mas consciente de que o bem-estar do vizinho (aliado, mas potencial inimigo) contribui para seu próprio conforto.

Pessoalmente, não endosso a visão de Stirner, que acho muito cínica e negativa, mas as teorias socialistas em geral não pregam o fim dos conflitos inerentes aos seres humanos (inevitáveis, penso eu) mas criticam o congelamento artificial desses conflitos em uma sociedade estamental, de classes, onde não existe possibilidade de mobilidade social, como era o caso do feudalismo e ainda é o caso do capitalismo. A visão dos anarquistas de uma sociedade pós-capitalista em revolução permanente é particularmente assustadora para alguns (para mim inclusive), e creio ser por isso que o que foi assimilado com mais frequência foi a concepção idílica e um tanto fantasiosa de Marx.

Terceiro: o socialismo não é uma concepção pré-industrial. Aliás, devo dizer que essa é uma idéia ridícula e demonstra total desconhecimento histórico. O capitalismo é pré-industrial: nasceu com os cercamentos de propriedades rurais na Inglaterra dos séculos XVI e XVII, tornou-se modelo filosófico para a burguesia revolucionária do século XVIII e tornou-se estrutura dominante durante a Revolução Industrial, final do XVIII até meados do XIX.

Já o socialismo foi sistematizado durante e após a Revolução Industrial e, como o próprio Marx coloca, seria impossível sem esta. Na verdade, o inventor da palavra "socialismo", o conde de Saint-Simon (injustamente chamado por Marx de "utópico"), acreditava que seria inviável a implantação de uma sociedade socialista sem um desenvolvimento tecnológico e científico agressivo, que proporcionasse aos humanos uma compreensão e controle sobre os recursos naturais que permitisse que o peso do trabalho braçal fosse parcialmente retirado dos ombros dos homens, possibilitando, dessa maneira, uma maior ênfase à formação cultural e intelectual e à construção da cidadania. Segundo Saint-Simon, isso seria impossível nas sociedades pré-industriais, já que a principal preocupação dos seres humanos concentrava-se na mera sobrevivência.

Acredito que boa parte desse erro de análise surge da visão neoliberal de que os modelos alternativos (socialismo, estado de bem-estar, capitalismo keynesiano) eram atrasados e retrógrados, e que só o neoliberalismo era responsável por grandes avanços tecnológicos. Trata-se de um tremendo mascaramento da história. Só para constar, o neoliberalismo nunca foi responsável por nenhum avanço científico-tecnológico marcante no século XX. Os maiores avanços ocorreram sob a égide do nazi-fascismo (área bélica e engenharia de foguetes), do capitalismo keynesiano (computadores, utensílios domésticos) e do socialismo (tecnologia aeroespacial e comunicação por rádio). Assim, o argumento é basicamente propagandístico, não encontra fundamentos reais.

Encerro por enquanto. Só gostaria de concluir rebatendo um argumento dos defensores incondicionais do socialismo que eu acho muito aborrecido: o de que países como União Soviética, Cuba e China não seriam socialistas e, como tal, o socialismo não deveria ser responsabilizado pelos crimes contra a humanidade cometidos nesses países. Afirmo que sim, eles são, ou foram, socialistas, embora tenham desenvolvido uma concepção de socialismo de Estado bastante autoritário e centralizador. E sim, creio que o socialismo pode e deve ser parcialmente responsabilizado pelos crimes cometidos. O sistema não é perfeito e de fato permite interpretações autoritárias e irresponsáveis que acabam por levar a abusos. O dever do bom socialista é reconhecer essas falhas e lutar para corrigí-las, não mascará-las e deixar tudo como está.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Sobre História III: O espaço geográfico e a História

Este é um dos textos que escrevi para as dissertações periódicas que faço em meu curso de História na PUC-Campinas. Como acredito que a maioria desses textos vai para o "arquivo L" depois que os professores os lêem, decidi postá-los aqui para o eventual interessado.

Uma parte essencial da constituição de um Estado-nação enquanto entidade política é a definição de um território e o controle exercido sobre ele. Um dos maiores fomentadores de conflitos entre dois Estados é a indefinição de fronteiras e, historicamente, uma parcela significativa dos Estados atualmente existentes alcançou sua territorialidade corrente de maneira violenta, em confronto direto contra outros Estados em formação.

Definir o território, no entanto, seja por meio de acordos multilaterais, seja por meios coercitivos, é somente o início do processo de fundamentação de um Estado. O grau de controle e vigilância que os órgãos constituintes do Estado conseguem manter sobre seu território circunscrito será determinante na manutenção e desenvolvimento futuros tanto de regiões isoladas sob sua tutela quanto da nação como um todo. Os recursos do qual o Estado-nação depende para seu funcionamento estão todos ligados ao seu território, sejam recursos naturais renováveis, como rios, açudes e florestas, sejam recursos naturais não renováveis, como minério de ferro ou petróleo, sejam recursos humanos representados pela força de trabalho da população que o Estado submete à sua autoridade.

Com o desenvolvimento das tecnologias da informação a partir do término da Segunda Guerra Mundial, o grau de controle que o Estado pode manter sobre seu território nacional cresceu de forma exponencial. A relação entre desenvolvimento técnico e a capacidade de monitoramento dos recursos (naturais ou não) é muito estreita e, geralmente, de mão dupla. Em nações com enormes extensões territoriais como os Estados Unidos ou a antiga União Soviética, a necessidade de controle e monitoramento gerou os mais diversos programas de incentivo ao desenvolvimento tecnológico para as áreas que se dedicam ao estudo e compreensão do manejo de recursos. De fato, o exemplo dos EUA e da URSS é emblemático, uma vez que o salto experimentado pelas tecnologias de informação, nos anos 1950, 60 e 70 (o advento da “Era da Informação”) coincide, não por acaso, com o auge do conflito político e ideológico entre essas duas nações, um período em que a noção de territorialidade passa a não incluir apenas as possessões diretas (sob controle político) desses Estados, mas também aquelas regiões do globo que sofrem influência indireta (controle econômico e cultural) procedente da pujança que ambas as potência alcançaram.

Essa nova realidade geopolítica explicitada pela Guerra Fria tornou, em um primeiro momento, ainda mais importante a questão territorial. Enquanto o Império Britânico, mesmo estando limitado a um território relativamente insignificante, conseguiu manter-se por todo o século XIX como a potência dominante do globo, dificilmente pode-se imaginar que os EUA ou a URSS conseguiriam o mesmo se não fosse por suas grandes extensões territoriais. Como observou o historiador Eric Hobsbawn[1], os britânicos contavam com o privilégio da exploração direta de seus departamentos ultramarinos, podendo prescindir, portanto, de pujança em sua economia interna. Tendo a realidade política do século XX estraçalhado qualquer possibilidade real de se manter controle direto sobre colônias (vide a catastrófica perda que Portugal sofreu com relação a suas posses africanas), o controle indireto se torna a única forma de exploração inter-fronteiras viável em meados do século. Ora, tal controle indireto só é possível para Estados que já tenham uma produção interna bem manejada, do contrário tornar-se-iam dependentes em excesso da produção externa. Para possuir uma produção interna minimamente apta a atender suas necessidades imediatas, a vasta extensão territorial (e conseqüente abundância de recursos) fazia-se vital.

Dito isso, o desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação a partir de 1950 torna-se o resultado lógico do jogo de poder entre os Estados-nações, já que o monitoramento e manejo de seus recursos domésticos constitui fator primordial para sua boa colocação no novo perfil da economia-mundo que se descortina. Porém, de certa maneira, o arrefecimento da Guerra Fria faz com que esse perfil sofra uma virada. A crise do petróleo, entre 1973 e 1979, demonstra a obsolescência tanto do socialismo soviético quanto do capitalismo keynesiano para lidarem com as questões geopolíticas no que se refere à exploração de recursos escassos. A incapacidade do presidente estadunidense Jimmy Carter para manter as políticas de seguridade social do New Deal e a demora do premier soviético Mikhail Gorbatchev para compreender que a balança das relações internacionais pendera para outra direção mostraram-se fatais para a continuidade do antigo modelo econômico bipolar, jogando ambas as potências em uma crise sistêmica da qual os Estados Unidos só saíram após uma reformulação total do seu manejo interno. Como bem sabemos, a União Soviética nunca conseguiu sair da crise, e seus Estados constituintes foram jogados no desespero, na miséria e na guerra civil.

Sob certa perspectiva, o término da Guerra Fria marcou o fim da soberania majoritária do Estado-nação sobre seu território. O novo modelo de capitalismo financeiro – ou, para usar um apelido popular, embora errôneo: capitalismo neoliberal – que se alimentou da carniça do keynesianismo e do socialismo real e tentou se impor como novo sistema unificador global é marcante por ser um sistema “desterritorializado”, ou seja, seu cerne produtivo não é delimitado pelas fronteiras políticas (diretas ou indiretas) do Estado-nação, mas sim pelo alcance do mercado de capitais que, ao menos potencialmente, é infinito. Assim, sob o modelo do capitalismo financeiro, o bem de consumo produzido na Tailândia, utilizando recursos vindos do Brasil, poderá ser vendido nos Estados Unidos, após ter sido autenticado por uma brand francesa. A exploração dos recursos, mesmo quando politicamente vinculados ao Estado-nação, passa a estar economicamente sujeito ao mercado de capitais que, pela própria essência do modelo financeiro, é desregulado e globalizado.

Esse novo modelo traz à baila uma série de questões sobre o manejo e vigilância do território nacional. De forma bem clara, o neoliberalismo tem o potencial de reproduzir globalmente os efeitos que o keynesianismo e o socialismo já criavam em escala local: o desenvolvimento desigual entre uma região dotada de recursos valiosos (em especial aqueles que podem ser convertidos em commodities) e outra que não possua os mesmos recursos, causando a superexploração de alguns territórios e o total descaso com o desenvolvimento de outros. Um exemplo disso é a mão-de-obra barata na China, casada com o desemprego no Brasil e com o sucateamento da educação técnico-científica nos Estados Unidos. De maneira ainda mais sombria, a desterritorialização do capital significa que os recursos retirados do território de uma nação não serão, necessariamente, utilizados em proveito daquela nação. De fato, tendem a não ser utilizados em proveito de nenhuma nação, dado que o modelo do capitalismo financeiro retira sua pujança da crescente falta de autonomia dos Estados sobre seus recursos domésticos.

[1] HOBSBAWN, Eric. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 54.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Paisagens Urbanas III: Cidadão X Consumidor

Outro dia estava indo ao centro de Campinas de ônibus, e tive a oportunidade de presenciar um gesto de cidadania quando o motorista do coletivo se deu ao trabalho de entrar em uma rua não programada pelo trajeto para poupar uma idosa o esforço de andar até o ponto. Foi um ato muito elogiável mas, quando alguns pontos mais tarde o bem-intencionado motorista percebeu que seu gesto havia lhe causado atraso considerável no trajeto, acelerou o ônibus a velocidades não muito amigáveis e quase nos matou a todos.

A equação que deve ter passado pela cabeça do motorista naquele momento é simples: atraso no trajeto = desconto no salário = menos dinheiro para alimentar a família. Visto isso, fiquei a matutar o quanto é difícil exercer cidadania em um meio social onde o dinheiro funciona como o grande meio de coesão. É o típico caso em que não se pode culpar ninguém especificamente. Óbvio, o colega motorista não pode ser culpado por querer manter seu horário e garantir seu salário, e o fato de ele quase ter causado um acidente não anula sua boa ação prévia, mas a grande tragédia disso tudo é que, se por uma fatalidade, ele realmente tivesse causado um acidente, ele, motorista, é que teria sido considerado imprudente.

Não a empresa de ônibus, que exige o cumprimento de trajetos impossíveis em uma cidade superlotada em um espaço de tempo inumanamente curto.

Não a prefeitura, que reluta em tomar atitudes para transformar o transporte público em algo mais eficiente, eliminando a necessidade dessa miríade de automóveis nas ruas.

Não o sistema econômico, que exige que o indivíduo esqueça o seu papel de cidadão e transforme-se em consumidor, comprando bens que deveriam ser seus por direito e vendendo a si mesmo para não morrer de fome.

A ironia da batalha entre cidadão e consumidor, uma guerra interna que todos nós somos obrigados a travar diariamente, é que as próprias instituições que estabeleceram as regras se acham acima delas. Duvido muito que o presidente da empresa de ônibus ou o prefeito de Campinas se rebaixem a andar no transporte público...

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sobre História II: O Século XX na História

Este é um dos textos que escrevi para as dissertações periódicas que faço em meu curso de História na PUC-Campinas. Como acredito que a maioria desses textos vai para o "arquivo L" depois que os professores os lêem, decidi postá-los aqui para o eventual interessado.

Pensar a história do século XX é pensar a história de todos nós, posto que, com exceção dos muito jovens, todos passamos uma parte considerável de nossas vidas lidando com os dividendos gerados por aquele século tão difícil. Embora pensar sobre o século XX possa parecer, a princípio, uma tarefa mais amena que pensar sobre a Idade Média ou sobre a colonização européia das Américas, precisamente por sua proximidade e familiaridade, essa impressão é enganosa. A dificuldade em ser objetivo quanto aos acontecimentos e seus significados aumenta exponencialmente quanto maior é nossa proximidade emotiva com o objeto estudado, e como não ser emotivo quando a história do XX se confunde com a nossa própria vivência cotidiana?

Essa “proximidade emotiva” pode não ser o pior dos males, contudo. Outra das dificuldades em se estudar a contemporaneidade, principalmente vista do camarote não tão privilegiado do século XXI, é nossa dificuldade em nos reconhecermos no século XX. Tantas mudanças ocorreram nos últimos vinte anos que o século passado, às vezes, nos soa mesmo como o “século passado”, e não algo que se encerrou a meros oito anos. Como Hobsbawn coloca, somos como os estudantes “para quem até a Guerra do Vietnã é pré-história”[1]. O homem do ano 2000 é um ser de curta memória.

Provindos de tradições historiográficas distintas, Eric Hobsbawn, Samuel Huntington e Arnold Toynbee começam seus textos sobre o XX de maneira semelhante: contando casos pitorescos para ilustrar um ponto. Hobsbawn fala sobre a visita de Mitterrand a Sarajevo em 1992, em meio aos conflitos fratricidas na Bósnia; Huntington menciona um encontro, também em 1992, na esteira do colapso soviético, entre estudiosos russos e estadunidenses em um auditório de Moscou, onde, curiosamente, a bandeira da Federação Russa fora hasteada de cabeça para baixo; Toynbee, escrevendo-nos de 1947, fala-nos de uma cena de 1897, quando tropas canadenses e australianas desfilavam na londrina Fleet Street em honra às bodas de diamante da Rainha Vitória. É curioso como os três exemplos invocam a imagem de impérios esfacelados e a incerteza do futuro, e talvez essa imagem de incerteza seja a melhor síntese para o século XX, algo que o XXI parece ter herdado.

Sendo o mais velho entre os três e tendo, indubitavelmente influenciado os outros dois, comecemos por analisar a visão de Toynbee. Ele experimenta a sensação de um mundo esfacelado na pele, tendo a Europa acabado de apagar os fogos da Segunda Guerra, e com a promessa de um novo conflito ainda mais fatídico no ar, encarnado na crescente hostilidade entre Estados Unidos e União Soviética. Diante dessa situação, Toynbee parece ter eleito como sua adversária a própria idéia de conflito, exibindo desprezo por todo acontecimento que pareça perturbar a harmonia do status quo. Chega a considerar a guerra e a luta de classes como sendo “enfermidades de prognóstico fatal”[2] para a sociedade, diferindo assim dos marxistas que, tal como Hobsbawn, tendem a ver o conflito como o motor da História, e de Huntington, para quem o conflito é inerente e inescapável quando se dá o encontro de duas civilizações. Ao enxergar o conflito como uma doença do corpo social, Toynbe se lança a procurar meios para extirpá-lo, e essa concepção dá a tônica para sua análise da contemporaneidade. Exibe antipatia e desconfiança tanto pelo capitalismo quanto pelo comunismo, por enxergar neste uma força da barbárie e naquele um sistema fragilizado por suas próprias contradições. A busca de Toynbee por uma “terceira via” que esteja livre tanto da tirania do Estado centralizado como da liberalização anárquica dos mercados parece apontar para a social-democracia, mas a visão particular de Toynbee por um estado de “fraternidade” entre os homens, promovido por aquilo que gosta de chamar de “religiões superiores”, indica um caminho que, para um observador postado nesses estranhos tempos do XXI, soa ameaçador.

Huntington, escrevendo na década de 1990, parece cético em relação ao estado de “fraternidade” esperado por Toynbee. Sob muitos aspectos, Huntington desempenha o papel de um defensor daquilo que costuma nomear-se, hoje em dia, de “neo-conservadorismo norte-americano”. Um crítico do utopismo liberal do final dos anos 1980, Huntington não enxerga nem o Fim da História de Fukuyama, nem tampouco a cessação de conflitos, e faz pouco caso da “globalização” alardeada por determinados estratos da sociedade. Sua teoria do choque de civilizações como artífice da nova condição geopolítica mundial ultrapassa as fronteiras demarcatórias dos Estados-nações, mas reorganiza-os nas áreas de influência que o autor denomina de “civilizações”, numerando-as sete (ou oito) aglomerados culturais transnacionais que, embora compartilhem internamente um instrumental social comum, exibem traços irreconciliáveis com as civilizações adjacentes[3].

Huntington enumera quatro teorias sobre o desenvolvimento da sociedade global e justifica o porquê de elas serem inadequadas. Menciona Fukuyama e seu mundo globalizado como sendo irrealistas, pois as forças globalizantes funcionam apenas no eixo econômico, nada satisfazendo as outras esferas de ação humana; ataca a idéia de uma civilização ocidental versus uma civilização oriental, pois enxerga o mundo como sendo multipolar e multicultural; valoriza a atuação dos Estados-nações, mas condena suas fronteiras como sendo cada vez mais permeáveis a fatores culturais e civilizacionais; por fim, reconhece, mas desvaloriza, os pequenos conflitos étnicos, pois entende que as forças que realmente moldam o mundo são os choques entre grandes grupos civilizacionais.

Embora o mérito da tese de Huntington sobre as idéias mais reacionárias de Toynbee seja notável, não é tão difícil, principalmente para o observador postado no camarote do XXI, perceber os problemas que o Choque das Civilizações acarreta. Sob certa perspectiva, Huntington não abandona a noção de “nós contra eles” que era cara a Toynbee. Ele reconhece que as civilizações não-ocidentais não são um todo homogêneo, mas elas ainda são vistas de um ponto de vista puramente ocidental, ou seja, extremamente simplista. O próprio fato de o autor se dar ao luxo de ignorar conflitos “intra-civilizacionais” como sendo incapazes de causar comoção mundial soa ingênuo ao leitor pós-11 de Setembro e, especialmente, após as crises do Kosovo e da Ossétia do Sul. A visão do autor pode até mesmo trair uma justificação para o temor que os ocidentais (entendidos aqui como norte-americanos e europeus) sentem com relação ao “resto”, já que Huntington ainda parece se aferrar ao conceito de que o contato entre o mundo ocidental e os diversos mundos não-ocidentais será, inevitavelmente, nefasto[4].

O que nos leva a Hobsbawn. Escrevendo no mesmo momento de Huntington, o marxista britânico adota o tom mais pessimista dentre os três autores. Ele não vê a possibilidade de uma nova ordem mundial, como Toynbee, nem adota o quesito “civilizacional” de Huntington. Para Hobsbawn, o século XX é uma época de colapso total e falha catastrófica de todas as ideologias, o que torna suas perspectivas para o XXI bastante sombrias. Tendo o comunismo falhado porque, basicamente, nem mesmo seus líderes acreditavam nele[5], e estando o livre-mercado fadado ao fracasso por andar na contramão da real experiência histórica[6], Hobsbawn ressalta que os mapas político-ideológicos que guiavam a velha sociedade acabaram por se desmantelar no correr do século XX. O individualismo gerado como efeito colateral do livre-mercado desregulado torna mesmo as realidades culturais mais locais bastante instáveis, e não se pode deixar de fazer uma comparação com o Choque de Civilizações de Huntington, embora Hobsbawn pareça se associar mais com a quarta tese atacada por Huntington: a da anarquia total em que se lançam os Estados-nações, divididos pelos conflitos étnicos. Hobsbawn procura demonstrar que o crescimento econômico e industrial caminha em total desnível com a distribuição social que a sociedade globalizada gerou, e que isso, mais do que uma divisão arbitrária de civilizações e seus conflitos inerentes, é o que desagrega o mundo.

[1] HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914 – 1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 13
[2] TOYNBEE, Arnold J. Estudos de História Contemporânea. São Paulo: Companhia Editora Nacional. pp. 33 – 34.
[3] HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. São Paulo: Objetiva. pp. 20
[4] Idem, pp. 41 – 43.
[5] HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914 – 1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 488
[6] Idem, pp. 571.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sobre História I: História e Memória na contemporaneidade

Este é um dos textos que escrevi para as dissertações periódicas que faço em meu curso de História na PUC-Campinas. Como acredito que a maioria desses textos vai para o "arquivo L" depois que os professores os lêem, decidi postá-los aqui para o eventual interessado.

Embora a relação entre “história” e “memória” possa parecer, em uma primeira análise, automática e bastante óbvia, os conflitos que se apresentam entre essas duas maneiras de se pensar os acontecimentos passados são bastante acirrados, e em diversas ocasiões causam problemas àqueles dedicados tanto ao estudo crítico das documentações quanto aos que buscam “preservar” uma determinada memória social. É especialmente quando o tema da construção das identidades culturais e nacionais se coloca em relevo que a dissociação entre a preservação da memória e a historiografia se torna mais explícita.

A memória não consiste apenas da faculdade biológica que os seres humanos (e, de fato, a maioria das espécies animais) exibem para armazenar e recordar de acontecimentos dos quais tomaram parte. A memória também é uma construção coletiva que os grupos sociais empregam para lhes emprestar coesão e para, justamente, lhes proporcionar identidade. A rememoração coletiva dos fatos relevantes para a formação da comunidade permite aos seus membros “lembrarem-se” e se identificarem com acontecimentos dos quais não tomaram parte, a maioria dos quais pode ter, inclusive, ocorrido antes de seu nascimento ou do nascimento de seus pais, mas que, caso não tivessem ocorrido (assim colocam as políticas da memória), teriam impossibilitado sua existência enquanto indivíduo no tempo presente. A concepção de que a identidade atual dos indivíduos é devedora de um elenco de acontecimentos passados permite inserir os indivíduos de um determinado grupo sócio-cultural em uma realidade maior que eles próprios, tornando, metaforicamente, a memória social algo inscrito em seu próprio código genético, à qual o indivíduo está indivisivelmente ligado.

Mas a construção da memória coletiva dificilmente pode ser vista como um processo natural que espontaneamente brota em meio aos membros de determinado grupo cultural. De fato, a apropriação das lembranças de uma comunidade pelos seus extratos dominantes e a ordenação e interpretação dessas lembranças de modo a formarem as bases para uma certa hierarquia social parece ser uma constante ao longo dos tempos. A forma de organização social mais difundida na atualidade, o Estado nacional, emprega fortemente o método da ordenação da memória para justificar suas próprias concepções de formação identitária. Os museus, os monumentos públicos, os nomes das ruas, as datas comemorativas, as celebrações formais e os slogans oficiais são os meios mais óbvios através dos quais o Estado nacional (e suas unidades formativas: províncias, estados, municípios...) constrói uma identidade coletiva que possa abarcar em seu seio todos os grupos e comunidades que habitam aquilo que designou como seu território. Nesses procedimentos de construção formal da memória, a ciência histórica desempenha papel crucial, as vezes como crítica dos memorialismos, as vezes como sua colaboradora. A justificação histórica e a soberania territorial constituem no binômio fundamental para validar a existência do Estado nacional. Não causa grandes espantos, portanto, que uma das primeiras ações do recém-independente Império Brasileiro tenha sido a criação de um Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ou que toda a política do jovem Estado de Israel baseie-se em seu suposto direito inato sobre as terras da Palestina, dado seu histórico (e mítico) passado enquanto nativos daquela região.

Discursando sobre a função social do passado, o historiador britânico Eric Hobsbawn coloca que parece ser um traço comum a diversas sociedade que o passado seja visto, essencialmente, como o padrão para o presente[1]. Novas gerações de uma coletividade costumam preservar quase tudo que as gerações mais antigas construíram, exceto quando se abrem “nichos” de novas oportunidades e necessidades sociais. São esses “nichos” que tendem a ser preenchidos com as inovações, que nem sempre estão livres do estigma de entrarem em conflito contra o que se tinha como tradicional. Nesse estranhamento entre o modo tradicional e a necessária inovação, os mecanismos da memória procuram encontrar o equilíbrio identitário do corpo social: mesmo as inovações acabam por ser incluídas na tradição como se fossem uma “redescoberta” ou um passo inevitável daquela sociedade em direção ao seu destino manifesto, e o que seria completamente novo é incorporado como parte integrante do antigo. Quando a sociedade atinge um ponto de ruptura, porém, a função da memória se altera. Não se enxerga mais o passado como o padrão mantenedor do presente, mas pode-se enxerga-lo como modelo para a elaboração de um novo presente, já que o vigente se encontra desmantelado pelas crises. Hobsbawn cita um interessante exemplo sob a forma do movimento zapatista durante a Revolução Mexicana na década de 1910. O desejo expresso pelos revolucionários de Morelos era o de apagar o período da ditadura de Porfírio Diaz e retornar ao status quo anterior a ela, das pequenas propriedades de terra controladas diretamente pela população campesina e por pequenos caudilhos, como o próprio Zapata[2].

Note-se que esse “retorno aos tempos áureos”, essa vontade de “colocar o trem de volta aos eixos”, dos quais fora tirado devido à ditadura porfirista é, na prática, impossível, não só devido à impossibilidade de repetição do mesmo contexto histórico, mas principalmente porque a própria memória coletiva a respeito da era pré-porfirismo está baseada não em uma real compreensão das características daquela sociedade passada, mas majoritariamente nas necessidades sociais do tempo presente que o porfirismo não conseguia preencher. O problema de distribuição de terras no México sob Porfírio Diaz era real e grave, mas era uma impossibilidade histórica demarcar exatamente as mesmas pequenas propriedades da era pré-porfirismo e retorna-las aos seus donos de direito, até mesmo pela inexistência de escrituras e documentos de comprovação. Em somatória, outras necessidades sociais surgiam dos restos do porfirismo, e o processo da Revolução Mexicana deveria lidar com todas elas em conjunto, não havendo condições para que um problema fosse cirurgicamente separado de outro. O processo revolucionário acaba por gerar um México totalmente novo, sem precedentes históricos, mas que, contudo, busca construir sua identidade a partir daquilo que a memória coletiva acredita ser seu passado de direito, e o Estado nacional mexicano constitui-se como sucessor lógico desse processo revolucionário ao apropriar-se dessa memória coletiva.

Sobre a memória coletiva apropriada pelos extratos dominantes constrói-se a História Oficial dos grupos sociais subordinados ao Estado nacional. Empresta-se, assim, o status de cientificidade à soberania nacional e aos clamores do Estado de ser o regente fidedigno dos indivíduos colocados, voluntariamente ou não, sob a égide da comunidade imaginária denominada “nação”: nação mexicana, nação brasileira, nação russa, nação francesa e assim por diante. Se, na época do absolutismo monárquico, o poder do rei encontrava no direito divino sua justificativa de mando, então na época do Estado nacional o poder se “racionaliza”, torna-se científico, embasando seu direito de mando no elenco de acontecimentos preservados vivos pela memória coletiva e tornados científicos pela autoridade da História Oficial. Como a memória não é uma entidade em si, mas uma construção identitária dos grupos sociais dentro de determinados contextos, seu embasamento se dá através de diversas manifestações de construção e preservação da identidade[3]. A religião é uma dessas manifestações, a arte é outra, uma vez que ambas expressam os desejos, ambições e temores que o grupo social carrega. A história também é uma manifestação de construção da identidade, mas o que não deixa de ocorrer com alguma freqüência é que a história, ao invés de assumir-se como um elemento de compreensão e formação crítica da memória coletiva, como uma questionadora da interpretação dos fatos moldadores da identidade social, acaba por tornar-se refém de uma formação acrítica da memória, um instrumento para a legitimação do tipo específico de identidade que o estrato dominante deseja projetar. A história torna-se História Oficial.

Contudo, talvez não seja possível transformar a história em um instrumento da preservação da memória oficial sem esvaziá-la de seus objetivos científicos. A história é uma prática que busca a análise crítica do acontecer humano. Como todas as metodologias que aspiram à cientificidade, a história precisa se comprometer na busca pela “verdade”, ou, pelo menos, na explicação mais coerente que os fatos e as documentações lhe permitam elaborar. Como ocorreu com outras ciências anteriormente, o compromisso da história na busca pela verdade coerente dos fatos a coloca, regularmente, em conflito com as versões oficiais que os órgãos encarregados da preservação da memória constroem, e a ciência histórica se vê, muitas vezes, na posição de desafiar e questionar os pressupostos da História Oficial. Isso porque o ato de elencar uma lista de acontecimentos que constituam as lembranças relevantes à formação identitária também consiste em fazer uma seleção daqueles acontecimentos que serão deixados de fora, relegados ao pó dos arquivos e ao poder devorador do tempo. Ou seja, a memória coletiva, e sua versão formal na História Oficial, consistem não apenas em uma rememoração de acontecimentos, mas também no deliberado esquecimento de outros acontecimentos que não forem considerados dignos de nota ou que, mais sombriamente, constituam um trauma social[4].

Por trauma social, entenda-se um acontecimento, ou conjunto de acontecimentos, que, por sua natureza extrema, despertam sentimentos de repulsa em uma sociedade como um todo, ou em grupos específicos dentro dessa sociedade que tenham visibilidade suficiente para se fazer notar. Exemplos notórios seriam o Holocausto para todos os povos europeus que o experimentaram, o 11 de Setembro para os estadunidenses e a escravidão no Brasil. Acontecimentos dolorosos como esses são frequentemente instrumentalizados pelos Estados nacionais, seja explorando-os de forma enviesada para insuflar paixões patrióticas, seja relegando-os às notas de rodapé da História Oficial de forma que o sangue que deles verteu não venha a manchar a construção do projeto nacional. Desta maneira, não deixa de causar, ao historiador, um misto de repúdio e divertimento ao deparar-se, em um museu, com uma cronologia da História do Brasil em que suas raízes africanas, européias e indígenas correm em linhas separadas até 1500, quando são magicamente transformadas em uma única linha contínua denominada “povo brasileiro”. Ora, todo o horror dos conflitos de terras e das práticas escravistas é convenientemente apagado por essa união mágica entre as três “raças”, constituindo, daí, a versão que o Estado nacional brasileiro procura oficializar de um povo miscigenado e desprovido de confrontos e contradições. É a seleção da memória e a História Oficial sendo escritas e transmitidas através de um museu (essa cronologia tríplice/unificada de fato existe: ela ocupa toda uma parede do segundo andar do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo-SP).

Assim, a ciência histórica agrupa entre suas aplicações a responsabilidade de questionar as prerrogativas da História Oficial quando esta se utiliza da memória coletiva para construir uma identidade para aqueles que pretende subordinar. A ciência histórica também se preocupa em preservar a memória dos acontecimentos, mas sua diferença com relação à memória coletiva é que ela busca explorar os territórios que o trauma social pode deixar intocados ou apenas parcialmente remexidos. A historiografia deveria não apenas manter viva a lembrança dos acontecimentos, de suas causas e conseqüências, mas também dar voz aqueles que a História Oficial inadvertidamente calou.

[1] HOBSBAWN, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 22-23.
[2] Idem, pp. 26-27.
[3] POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1989, pp. 7-12.
[4] SILVA, Helenice Rodrigues da. Rememoração/Comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 44, pp. 430-433.

domingo, 26 de abril de 2009

Paisagens Urbanas II: Invasão de zumbis?

Em minha cidade, Campinas, um dos cemitérios mais antigos é o Cemitério da Saudade. É daqueles em que os túmulos são todos trabalhados, cheios de esculturas de anjos, santos, cruzes, feitos de mármore de alta qualidade e dotados de ânforas para depositar flores. É um lugar muito bonito para aqueles que (como eu) apreciam os trabalhos de arte funerária e gostam de encontrar túmulos datando de mais de um século atrás. Também é um lugar que faz a alegria dos góticos ocasionais que queiram fazer um hang out entre as sepulturas. De uma forma geral, é um local importante para a história e memória da cidade.

Mas, de uns tempos pra cá, o Cemitério da Saudade está parecendo uma fortaleza. O frequente roubo de vasos e outros artefatos tumulares que o lugar vem sofrendo levaram os responsáveis por sua manutenção a erguer um muro altíssimo a sua volta, coroado com ameaçadoras espirais de arame farpado. Se antes era legal olhar a partir das avenidas circundantes e ver aquela skyline de cruzes e torrinhas, agora tudo que se consegue ver é aquele paredão enorme que parece que vai cair sobre nós. Por algum motivo, sempre que passo perto do Cemitério da Saudade, me lembros dos filmes de zumbi do George Romero, como se a muralha tivesse sido colocada ali para proteger a cidade contra a fúria dos mortos inquietos, perturbados pelo furto de suas possessões.

Claro que não existe nenhum morto-vivo possessivo. O que existe é o desejo de resguardar bens materiais que, em tese, pertencem ao morto e o homenageiam, mais ou menos como os artefatos de ouro puro que eram enterrados junto aos faraós do Antigo Egito. Como o nosso cemitério, as tumbas dos faraós também eram corriqueiramente saqueadas por indivíduos em busca de algo que pudessem trocar por alimento e bens que lhes eram negados pela sociedade estamental dos egípcios. Pois a triste realidade que marcos como o Cemitério da Saudade expõe com clareza é o fato de alguns mortos possuírem muito mais riqueza que muitos vivos. E a ironia que seus altíssimos muros transmitem é a proteção dispensada às relíquias dos defuntos, enquanto tantos vivos continuam em situação de total desamparo.