sexta-feira, 5 de junho de 2009

Sobre História III: O espaço geográfico e a História

Este é um dos textos que escrevi para as dissertações periódicas que faço em meu curso de História na PUC-Campinas. Como acredito que a maioria desses textos vai para o "arquivo L" depois que os professores os lêem, decidi postá-los aqui para o eventual interessado.

Uma parte essencial da constituição de um Estado-nação enquanto entidade política é a definição de um território e o controle exercido sobre ele. Um dos maiores fomentadores de conflitos entre dois Estados é a indefinição de fronteiras e, historicamente, uma parcela significativa dos Estados atualmente existentes alcançou sua territorialidade corrente de maneira violenta, em confronto direto contra outros Estados em formação.

Definir o território, no entanto, seja por meio de acordos multilaterais, seja por meios coercitivos, é somente o início do processo de fundamentação de um Estado. O grau de controle e vigilância que os órgãos constituintes do Estado conseguem manter sobre seu território circunscrito será determinante na manutenção e desenvolvimento futuros tanto de regiões isoladas sob sua tutela quanto da nação como um todo. Os recursos do qual o Estado-nação depende para seu funcionamento estão todos ligados ao seu território, sejam recursos naturais renováveis, como rios, açudes e florestas, sejam recursos naturais não renováveis, como minério de ferro ou petróleo, sejam recursos humanos representados pela força de trabalho da população que o Estado submete à sua autoridade.

Com o desenvolvimento das tecnologias da informação a partir do término da Segunda Guerra Mundial, o grau de controle que o Estado pode manter sobre seu território nacional cresceu de forma exponencial. A relação entre desenvolvimento técnico e a capacidade de monitoramento dos recursos (naturais ou não) é muito estreita e, geralmente, de mão dupla. Em nações com enormes extensões territoriais como os Estados Unidos ou a antiga União Soviética, a necessidade de controle e monitoramento gerou os mais diversos programas de incentivo ao desenvolvimento tecnológico para as áreas que se dedicam ao estudo e compreensão do manejo de recursos. De fato, o exemplo dos EUA e da URSS é emblemático, uma vez que o salto experimentado pelas tecnologias de informação, nos anos 1950, 60 e 70 (o advento da “Era da Informação”) coincide, não por acaso, com o auge do conflito político e ideológico entre essas duas nações, um período em que a noção de territorialidade passa a não incluir apenas as possessões diretas (sob controle político) desses Estados, mas também aquelas regiões do globo que sofrem influência indireta (controle econômico e cultural) procedente da pujança que ambas as potência alcançaram.

Essa nova realidade geopolítica explicitada pela Guerra Fria tornou, em um primeiro momento, ainda mais importante a questão territorial. Enquanto o Império Britânico, mesmo estando limitado a um território relativamente insignificante, conseguiu manter-se por todo o século XIX como a potência dominante do globo, dificilmente pode-se imaginar que os EUA ou a URSS conseguiriam o mesmo se não fosse por suas grandes extensões territoriais. Como observou o historiador Eric Hobsbawn[1], os britânicos contavam com o privilégio da exploração direta de seus departamentos ultramarinos, podendo prescindir, portanto, de pujança em sua economia interna. Tendo a realidade política do século XX estraçalhado qualquer possibilidade real de se manter controle direto sobre colônias (vide a catastrófica perda que Portugal sofreu com relação a suas posses africanas), o controle indireto se torna a única forma de exploração inter-fronteiras viável em meados do século. Ora, tal controle indireto só é possível para Estados que já tenham uma produção interna bem manejada, do contrário tornar-se-iam dependentes em excesso da produção externa. Para possuir uma produção interna minimamente apta a atender suas necessidades imediatas, a vasta extensão territorial (e conseqüente abundância de recursos) fazia-se vital.

Dito isso, o desenvolvimento acelerado das tecnologias de informação a partir de 1950 torna-se o resultado lógico do jogo de poder entre os Estados-nações, já que o monitoramento e manejo de seus recursos domésticos constitui fator primordial para sua boa colocação no novo perfil da economia-mundo que se descortina. Porém, de certa maneira, o arrefecimento da Guerra Fria faz com que esse perfil sofra uma virada. A crise do petróleo, entre 1973 e 1979, demonstra a obsolescência tanto do socialismo soviético quanto do capitalismo keynesiano para lidarem com as questões geopolíticas no que se refere à exploração de recursos escassos. A incapacidade do presidente estadunidense Jimmy Carter para manter as políticas de seguridade social do New Deal e a demora do premier soviético Mikhail Gorbatchev para compreender que a balança das relações internacionais pendera para outra direção mostraram-se fatais para a continuidade do antigo modelo econômico bipolar, jogando ambas as potências em uma crise sistêmica da qual os Estados Unidos só saíram após uma reformulação total do seu manejo interno. Como bem sabemos, a União Soviética nunca conseguiu sair da crise, e seus Estados constituintes foram jogados no desespero, na miséria e na guerra civil.

Sob certa perspectiva, o término da Guerra Fria marcou o fim da soberania majoritária do Estado-nação sobre seu território. O novo modelo de capitalismo financeiro – ou, para usar um apelido popular, embora errôneo: capitalismo neoliberal – que se alimentou da carniça do keynesianismo e do socialismo real e tentou se impor como novo sistema unificador global é marcante por ser um sistema “desterritorializado”, ou seja, seu cerne produtivo não é delimitado pelas fronteiras políticas (diretas ou indiretas) do Estado-nação, mas sim pelo alcance do mercado de capitais que, ao menos potencialmente, é infinito. Assim, sob o modelo do capitalismo financeiro, o bem de consumo produzido na Tailândia, utilizando recursos vindos do Brasil, poderá ser vendido nos Estados Unidos, após ter sido autenticado por uma brand francesa. A exploração dos recursos, mesmo quando politicamente vinculados ao Estado-nação, passa a estar economicamente sujeito ao mercado de capitais que, pela própria essência do modelo financeiro, é desregulado e globalizado.

Esse novo modelo traz à baila uma série de questões sobre o manejo e vigilância do território nacional. De forma bem clara, o neoliberalismo tem o potencial de reproduzir globalmente os efeitos que o keynesianismo e o socialismo já criavam em escala local: o desenvolvimento desigual entre uma região dotada de recursos valiosos (em especial aqueles que podem ser convertidos em commodities) e outra que não possua os mesmos recursos, causando a superexploração de alguns territórios e o total descaso com o desenvolvimento de outros. Um exemplo disso é a mão-de-obra barata na China, casada com o desemprego no Brasil e com o sucateamento da educação técnico-científica nos Estados Unidos. De maneira ainda mais sombria, a desterritorialização do capital significa que os recursos retirados do território de uma nação não serão, necessariamente, utilizados em proveito daquela nação. De fato, tendem a não ser utilizados em proveito de nenhuma nação, dado que o modelo do capitalismo financeiro retira sua pujança da crescente falta de autonomia dos Estados sobre seus recursos domésticos.

[1] HOBSBAWN, Eric. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. pp. 54.

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