quinta-feira, 14 de maio de 2009

Sobre História II: O Século XX na História

Este é um dos textos que escrevi para as dissertações periódicas que faço em meu curso de História na PUC-Campinas. Como acredito que a maioria desses textos vai para o "arquivo L" depois que os professores os lêem, decidi postá-los aqui para o eventual interessado.

Pensar a história do século XX é pensar a história de todos nós, posto que, com exceção dos muito jovens, todos passamos uma parte considerável de nossas vidas lidando com os dividendos gerados por aquele século tão difícil. Embora pensar sobre o século XX possa parecer, a princípio, uma tarefa mais amena que pensar sobre a Idade Média ou sobre a colonização européia das Américas, precisamente por sua proximidade e familiaridade, essa impressão é enganosa. A dificuldade em ser objetivo quanto aos acontecimentos e seus significados aumenta exponencialmente quanto maior é nossa proximidade emotiva com o objeto estudado, e como não ser emotivo quando a história do XX se confunde com a nossa própria vivência cotidiana?

Essa “proximidade emotiva” pode não ser o pior dos males, contudo. Outra das dificuldades em se estudar a contemporaneidade, principalmente vista do camarote não tão privilegiado do século XXI, é nossa dificuldade em nos reconhecermos no século XX. Tantas mudanças ocorreram nos últimos vinte anos que o século passado, às vezes, nos soa mesmo como o “século passado”, e não algo que se encerrou a meros oito anos. Como Hobsbawn coloca, somos como os estudantes “para quem até a Guerra do Vietnã é pré-história”[1]. O homem do ano 2000 é um ser de curta memória.

Provindos de tradições historiográficas distintas, Eric Hobsbawn, Samuel Huntington e Arnold Toynbee começam seus textos sobre o XX de maneira semelhante: contando casos pitorescos para ilustrar um ponto. Hobsbawn fala sobre a visita de Mitterrand a Sarajevo em 1992, em meio aos conflitos fratricidas na Bósnia; Huntington menciona um encontro, também em 1992, na esteira do colapso soviético, entre estudiosos russos e estadunidenses em um auditório de Moscou, onde, curiosamente, a bandeira da Federação Russa fora hasteada de cabeça para baixo; Toynbee, escrevendo-nos de 1947, fala-nos de uma cena de 1897, quando tropas canadenses e australianas desfilavam na londrina Fleet Street em honra às bodas de diamante da Rainha Vitória. É curioso como os três exemplos invocam a imagem de impérios esfacelados e a incerteza do futuro, e talvez essa imagem de incerteza seja a melhor síntese para o século XX, algo que o XXI parece ter herdado.

Sendo o mais velho entre os três e tendo, indubitavelmente influenciado os outros dois, comecemos por analisar a visão de Toynbee. Ele experimenta a sensação de um mundo esfacelado na pele, tendo a Europa acabado de apagar os fogos da Segunda Guerra, e com a promessa de um novo conflito ainda mais fatídico no ar, encarnado na crescente hostilidade entre Estados Unidos e União Soviética. Diante dessa situação, Toynbee parece ter eleito como sua adversária a própria idéia de conflito, exibindo desprezo por todo acontecimento que pareça perturbar a harmonia do status quo. Chega a considerar a guerra e a luta de classes como sendo “enfermidades de prognóstico fatal”[2] para a sociedade, diferindo assim dos marxistas que, tal como Hobsbawn, tendem a ver o conflito como o motor da História, e de Huntington, para quem o conflito é inerente e inescapável quando se dá o encontro de duas civilizações. Ao enxergar o conflito como uma doença do corpo social, Toynbe se lança a procurar meios para extirpá-lo, e essa concepção dá a tônica para sua análise da contemporaneidade. Exibe antipatia e desconfiança tanto pelo capitalismo quanto pelo comunismo, por enxergar neste uma força da barbárie e naquele um sistema fragilizado por suas próprias contradições. A busca de Toynbee por uma “terceira via” que esteja livre tanto da tirania do Estado centralizado como da liberalização anárquica dos mercados parece apontar para a social-democracia, mas a visão particular de Toynbee por um estado de “fraternidade” entre os homens, promovido por aquilo que gosta de chamar de “religiões superiores”, indica um caminho que, para um observador postado nesses estranhos tempos do XXI, soa ameaçador.

Huntington, escrevendo na década de 1990, parece cético em relação ao estado de “fraternidade” esperado por Toynbee. Sob muitos aspectos, Huntington desempenha o papel de um defensor daquilo que costuma nomear-se, hoje em dia, de “neo-conservadorismo norte-americano”. Um crítico do utopismo liberal do final dos anos 1980, Huntington não enxerga nem o Fim da História de Fukuyama, nem tampouco a cessação de conflitos, e faz pouco caso da “globalização” alardeada por determinados estratos da sociedade. Sua teoria do choque de civilizações como artífice da nova condição geopolítica mundial ultrapassa as fronteiras demarcatórias dos Estados-nações, mas reorganiza-os nas áreas de influência que o autor denomina de “civilizações”, numerando-as sete (ou oito) aglomerados culturais transnacionais que, embora compartilhem internamente um instrumental social comum, exibem traços irreconciliáveis com as civilizações adjacentes[3].

Huntington enumera quatro teorias sobre o desenvolvimento da sociedade global e justifica o porquê de elas serem inadequadas. Menciona Fukuyama e seu mundo globalizado como sendo irrealistas, pois as forças globalizantes funcionam apenas no eixo econômico, nada satisfazendo as outras esferas de ação humana; ataca a idéia de uma civilização ocidental versus uma civilização oriental, pois enxerga o mundo como sendo multipolar e multicultural; valoriza a atuação dos Estados-nações, mas condena suas fronteiras como sendo cada vez mais permeáveis a fatores culturais e civilizacionais; por fim, reconhece, mas desvaloriza, os pequenos conflitos étnicos, pois entende que as forças que realmente moldam o mundo são os choques entre grandes grupos civilizacionais.

Embora o mérito da tese de Huntington sobre as idéias mais reacionárias de Toynbee seja notável, não é tão difícil, principalmente para o observador postado no camarote do XXI, perceber os problemas que o Choque das Civilizações acarreta. Sob certa perspectiva, Huntington não abandona a noção de “nós contra eles” que era cara a Toynbee. Ele reconhece que as civilizações não-ocidentais não são um todo homogêneo, mas elas ainda são vistas de um ponto de vista puramente ocidental, ou seja, extremamente simplista. O próprio fato de o autor se dar ao luxo de ignorar conflitos “intra-civilizacionais” como sendo incapazes de causar comoção mundial soa ingênuo ao leitor pós-11 de Setembro e, especialmente, após as crises do Kosovo e da Ossétia do Sul. A visão do autor pode até mesmo trair uma justificação para o temor que os ocidentais (entendidos aqui como norte-americanos e europeus) sentem com relação ao “resto”, já que Huntington ainda parece se aferrar ao conceito de que o contato entre o mundo ocidental e os diversos mundos não-ocidentais será, inevitavelmente, nefasto[4].

O que nos leva a Hobsbawn. Escrevendo no mesmo momento de Huntington, o marxista britânico adota o tom mais pessimista dentre os três autores. Ele não vê a possibilidade de uma nova ordem mundial, como Toynbee, nem adota o quesito “civilizacional” de Huntington. Para Hobsbawn, o século XX é uma época de colapso total e falha catastrófica de todas as ideologias, o que torna suas perspectivas para o XXI bastante sombrias. Tendo o comunismo falhado porque, basicamente, nem mesmo seus líderes acreditavam nele[5], e estando o livre-mercado fadado ao fracasso por andar na contramão da real experiência histórica[6], Hobsbawn ressalta que os mapas político-ideológicos que guiavam a velha sociedade acabaram por se desmantelar no correr do século XX. O individualismo gerado como efeito colateral do livre-mercado desregulado torna mesmo as realidades culturais mais locais bastante instáveis, e não se pode deixar de fazer uma comparação com o Choque de Civilizações de Huntington, embora Hobsbawn pareça se associar mais com a quarta tese atacada por Huntington: a da anarquia total em que se lançam os Estados-nações, divididos pelos conflitos étnicos. Hobsbawn procura demonstrar que o crescimento econômico e industrial caminha em total desnível com a distribuição social que a sociedade globalizada gerou, e que isso, mais do que uma divisão arbitrária de civilizações e seus conflitos inerentes, é o que desagrega o mundo.

[1] HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914 – 1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 13
[2] TOYNBEE, Arnold J. Estudos de História Contemporânea. São Paulo: Companhia Editora Nacional. pp. 33 – 34.
[3] HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. São Paulo: Objetiva. pp. 20
[4] Idem, pp. 41 – 43.
[5] HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: O Breve Século XX (1914 – 1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1994. pp. 488
[6] Idem, pp. 571.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sobre História I: História e Memória na contemporaneidade

Este é um dos textos que escrevi para as dissertações periódicas que faço em meu curso de História na PUC-Campinas. Como acredito que a maioria desses textos vai para o "arquivo L" depois que os professores os lêem, decidi postá-los aqui para o eventual interessado.

Embora a relação entre “história” e “memória” possa parecer, em uma primeira análise, automática e bastante óbvia, os conflitos que se apresentam entre essas duas maneiras de se pensar os acontecimentos passados são bastante acirrados, e em diversas ocasiões causam problemas àqueles dedicados tanto ao estudo crítico das documentações quanto aos que buscam “preservar” uma determinada memória social. É especialmente quando o tema da construção das identidades culturais e nacionais se coloca em relevo que a dissociação entre a preservação da memória e a historiografia se torna mais explícita.

A memória não consiste apenas da faculdade biológica que os seres humanos (e, de fato, a maioria das espécies animais) exibem para armazenar e recordar de acontecimentos dos quais tomaram parte. A memória também é uma construção coletiva que os grupos sociais empregam para lhes emprestar coesão e para, justamente, lhes proporcionar identidade. A rememoração coletiva dos fatos relevantes para a formação da comunidade permite aos seus membros “lembrarem-se” e se identificarem com acontecimentos dos quais não tomaram parte, a maioria dos quais pode ter, inclusive, ocorrido antes de seu nascimento ou do nascimento de seus pais, mas que, caso não tivessem ocorrido (assim colocam as políticas da memória), teriam impossibilitado sua existência enquanto indivíduo no tempo presente. A concepção de que a identidade atual dos indivíduos é devedora de um elenco de acontecimentos passados permite inserir os indivíduos de um determinado grupo sócio-cultural em uma realidade maior que eles próprios, tornando, metaforicamente, a memória social algo inscrito em seu próprio código genético, à qual o indivíduo está indivisivelmente ligado.

Mas a construção da memória coletiva dificilmente pode ser vista como um processo natural que espontaneamente brota em meio aos membros de determinado grupo cultural. De fato, a apropriação das lembranças de uma comunidade pelos seus extratos dominantes e a ordenação e interpretação dessas lembranças de modo a formarem as bases para uma certa hierarquia social parece ser uma constante ao longo dos tempos. A forma de organização social mais difundida na atualidade, o Estado nacional, emprega fortemente o método da ordenação da memória para justificar suas próprias concepções de formação identitária. Os museus, os monumentos públicos, os nomes das ruas, as datas comemorativas, as celebrações formais e os slogans oficiais são os meios mais óbvios através dos quais o Estado nacional (e suas unidades formativas: províncias, estados, municípios...) constrói uma identidade coletiva que possa abarcar em seu seio todos os grupos e comunidades que habitam aquilo que designou como seu território. Nesses procedimentos de construção formal da memória, a ciência histórica desempenha papel crucial, as vezes como crítica dos memorialismos, as vezes como sua colaboradora. A justificação histórica e a soberania territorial constituem no binômio fundamental para validar a existência do Estado nacional. Não causa grandes espantos, portanto, que uma das primeiras ações do recém-independente Império Brasileiro tenha sido a criação de um Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ou que toda a política do jovem Estado de Israel baseie-se em seu suposto direito inato sobre as terras da Palestina, dado seu histórico (e mítico) passado enquanto nativos daquela região.

Discursando sobre a função social do passado, o historiador britânico Eric Hobsbawn coloca que parece ser um traço comum a diversas sociedade que o passado seja visto, essencialmente, como o padrão para o presente[1]. Novas gerações de uma coletividade costumam preservar quase tudo que as gerações mais antigas construíram, exceto quando se abrem “nichos” de novas oportunidades e necessidades sociais. São esses “nichos” que tendem a ser preenchidos com as inovações, que nem sempre estão livres do estigma de entrarem em conflito contra o que se tinha como tradicional. Nesse estranhamento entre o modo tradicional e a necessária inovação, os mecanismos da memória procuram encontrar o equilíbrio identitário do corpo social: mesmo as inovações acabam por ser incluídas na tradição como se fossem uma “redescoberta” ou um passo inevitável daquela sociedade em direção ao seu destino manifesto, e o que seria completamente novo é incorporado como parte integrante do antigo. Quando a sociedade atinge um ponto de ruptura, porém, a função da memória se altera. Não se enxerga mais o passado como o padrão mantenedor do presente, mas pode-se enxerga-lo como modelo para a elaboração de um novo presente, já que o vigente se encontra desmantelado pelas crises. Hobsbawn cita um interessante exemplo sob a forma do movimento zapatista durante a Revolução Mexicana na década de 1910. O desejo expresso pelos revolucionários de Morelos era o de apagar o período da ditadura de Porfírio Diaz e retornar ao status quo anterior a ela, das pequenas propriedades de terra controladas diretamente pela população campesina e por pequenos caudilhos, como o próprio Zapata[2].

Note-se que esse “retorno aos tempos áureos”, essa vontade de “colocar o trem de volta aos eixos”, dos quais fora tirado devido à ditadura porfirista é, na prática, impossível, não só devido à impossibilidade de repetição do mesmo contexto histórico, mas principalmente porque a própria memória coletiva a respeito da era pré-porfirismo está baseada não em uma real compreensão das características daquela sociedade passada, mas majoritariamente nas necessidades sociais do tempo presente que o porfirismo não conseguia preencher. O problema de distribuição de terras no México sob Porfírio Diaz era real e grave, mas era uma impossibilidade histórica demarcar exatamente as mesmas pequenas propriedades da era pré-porfirismo e retorna-las aos seus donos de direito, até mesmo pela inexistência de escrituras e documentos de comprovação. Em somatória, outras necessidades sociais surgiam dos restos do porfirismo, e o processo da Revolução Mexicana deveria lidar com todas elas em conjunto, não havendo condições para que um problema fosse cirurgicamente separado de outro. O processo revolucionário acaba por gerar um México totalmente novo, sem precedentes históricos, mas que, contudo, busca construir sua identidade a partir daquilo que a memória coletiva acredita ser seu passado de direito, e o Estado nacional mexicano constitui-se como sucessor lógico desse processo revolucionário ao apropriar-se dessa memória coletiva.

Sobre a memória coletiva apropriada pelos extratos dominantes constrói-se a História Oficial dos grupos sociais subordinados ao Estado nacional. Empresta-se, assim, o status de cientificidade à soberania nacional e aos clamores do Estado de ser o regente fidedigno dos indivíduos colocados, voluntariamente ou não, sob a égide da comunidade imaginária denominada “nação”: nação mexicana, nação brasileira, nação russa, nação francesa e assim por diante. Se, na época do absolutismo monárquico, o poder do rei encontrava no direito divino sua justificativa de mando, então na época do Estado nacional o poder se “racionaliza”, torna-se científico, embasando seu direito de mando no elenco de acontecimentos preservados vivos pela memória coletiva e tornados científicos pela autoridade da História Oficial. Como a memória não é uma entidade em si, mas uma construção identitária dos grupos sociais dentro de determinados contextos, seu embasamento se dá através de diversas manifestações de construção e preservação da identidade[3]. A religião é uma dessas manifestações, a arte é outra, uma vez que ambas expressam os desejos, ambições e temores que o grupo social carrega. A história também é uma manifestação de construção da identidade, mas o que não deixa de ocorrer com alguma freqüência é que a história, ao invés de assumir-se como um elemento de compreensão e formação crítica da memória coletiva, como uma questionadora da interpretação dos fatos moldadores da identidade social, acaba por tornar-se refém de uma formação acrítica da memória, um instrumento para a legitimação do tipo específico de identidade que o estrato dominante deseja projetar. A história torna-se História Oficial.

Contudo, talvez não seja possível transformar a história em um instrumento da preservação da memória oficial sem esvaziá-la de seus objetivos científicos. A história é uma prática que busca a análise crítica do acontecer humano. Como todas as metodologias que aspiram à cientificidade, a história precisa se comprometer na busca pela “verdade”, ou, pelo menos, na explicação mais coerente que os fatos e as documentações lhe permitam elaborar. Como ocorreu com outras ciências anteriormente, o compromisso da história na busca pela verdade coerente dos fatos a coloca, regularmente, em conflito com as versões oficiais que os órgãos encarregados da preservação da memória constroem, e a ciência histórica se vê, muitas vezes, na posição de desafiar e questionar os pressupostos da História Oficial. Isso porque o ato de elencar uma lista de acontecimentos que constituam as lembranças relevantes à formação identitária também consiste em fazer uma seleção daqueles acontecimentos que serão deixados de fora, relegados ao pó dos arquivos e ao poder devorador do tempo. Ou seja, a memória coletiva, e sua versão formal na História Oficial, consistem não apenas em uma rememoração de acontecimentos, mas também no deliberado esquecimento de outros acontecimentos que não forem considerados dignos de nota ou que, mais sombriamente, constituam um trauma social[4].

Por trauma social, entenda-se um acontecimento, ou conjunto de acontecimentos, que, por sua natureza extrema, despertam sentimentos de repulsa em uma sociedade como um todo, ou em grupos específicos dentro dessa sociedade que tenham visibilidade suficiente para se fazer notar. Exemplos notórios seriam o Holocausto para todos os povos europeus que o experimentaram, o 11 de Setembro para os estadunidenses e a escravidão no Brasil. Acontecimentos dolorosos como esses são frequentemente instrumentalizados pelos Estados nacionais, seja explorando-os de forma enviesada para insuflar paixões patrióticas, seja relegando-os às notas de rodapé da História Oficial de forma que o sangue que deles verteu não venha a manchar a construção do projeto nacional. Desta maneira, não deixa de causar, ao historiador, um misto de repúdio e divertimento ao deparar-se, em um museu, com uma cronologia da História do Brasil em que suas raízes africanas, européias e indígenas correm em linhas separadas até 1500, quando são magicamente transformadas em uma única linha contínua denominada “povo brasileiro”. Ora, todo o horror dos conflitos de terras e das práticas escravistas é convenientemente apagado por essa união mágica entre as três “raças”, constituindo, daí, a versão que o Estado nacional brasileiro procura oficializar de um povo miscigenado e desprovido de confrontos e contradições. É a seleção da memória e a História Oficial sendo escritas e transmitidas através de um museu (essa cronologia tríplice/unificada de fato existe: ela ocupa toda uma parede do segundo andar do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo-SP).

Assim, a ciência histórica agrupa entre suas aplicações a responsabilidade de questionar as prerrogativas da História Oficial quando esta se utiliza da memória coletiva para construir uma identidade para aqueles que pretende subordinar. A ciência histórica também se preocupa em preservar a memória dos acontecimentos, mas sua diferença com relação à memória coletiva é que ela busca explorar os territórios que o trauma social pode deixar intocados ou apenas parcialmente remexidos. A historiografia deveria não apenas manter viva a lembrança dos acontecimentos, de suas causas e conseqüências, mas também dar voz aqueles que a História Oficial inadvertidamente calou.

[1] HOBSBAWN, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 22-23.
[2] Idem, pp. 26-27.
[3] POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1989, pp. 7-12.
[4] SILVA, Helenice Rodrigues da. Rememoração/Comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 44, pp. 430-433.