quinta-feira, 7 de maio de 2009

Sobre História I: História e Memória na contemporaneidade

Este é um dos textos que escrevi para as dissertações periódicas que faço em meu curso de História na PUC-Campinas. Como acredito que a maioria desses textos vai para o "arquivo L" depois que os professores os lêem, decidi postá-los aqui para o eventual interessado.

Embora a relação entre “história” e “memória” possa parecer, em uma primeira análise, automática e bastante óbvia, os conflitos que se apresentam entre essas duas maneiras de se pensar os acontecimentos passados são bastante acirrados, e em diversas ocasiões causam problemas àqueles dedicados tanto ao estudo crítico das documentações quanto aos que buscam “preservar” uma determinada memória social. É especialmente quando o tema da construção das identidades culturais e nacionais se coloca em relevo que a dissociação entre a preservação da memória e a historiografia se torna mais explícita.

A memória não consiste apenas da faculdade biológica que os seres humanos (e, de fato, a maioria das espécies animais) exibem para armazenar e recordar de acontecimentos dos quais tomaram parte. A memória também é uma construção coletiva que os grupos sociais empregam para lhes emprestar coesão e para, justamente, lhes proporcionar identidade. A rememoração coletiva dos fatos relevantes para a formação da comunidade permite aos seus membros “lembrarem-se” e se identificarem com acontecimentos dos quais não tomaram parte, a maioria dos quais pode ter, inclusive, ocorrido antes de seu nascimento ou do nascimento de seus pais, mas que, caso não tivessem ocorrido (assim colocam as políticas da memória), teriam impossibilitado sua existência enquanto indivíduo no tempo presente. A concepção de que a identidade atual dos indivíduos é devedora de um elenco de acontecimentos passados permite inserir os indivíduos de um determinado grupo sócio-cultural em uma realidade maior que eles próprios, tornando, metaforicamente, a memória social algo inscrito em seu próprio código genético, à qual o indivíduo está indivisivelmente ligado.

Mas a construção da memória coletiva dificilmente pode ser vista como um processo natural que espontaneamente brota em meio aos membros de determinado grupo cultural. De fato, a apropriação das lembranças de uma comunidade pelos seus extratos dominantes e a ordenação e interpretação dessas lembranças de modo a formarem as bases para uma certa hierarquia social parece ser uma constante ao longo dos tempos. A forma de organização social mais difundida na atualidade, o Estado nacional, emprega fortemente o método da ordenação da memória para justificar suas próprias concepções de formação identitária. Os museus, os monumentos públicos, os nomes das ruas, as datas comemorativas, as celebrações formais e os slogans oficiais são os meios mais óbvios através dos quais o Estado nacional (e suas unidades formativas: províncias, estados, municípios...) constrói uma identidade coletiva que possa abarcar em seu seio todos os grupos e comunidades que habitam aquilo que designou como seu território. Nesses procedimentos de construção formal da memória, a ciência histórica desempenha papel crucial, as vezes como crítica dos memorialismos, as vezes como sua colaboradora. A justificação histórica e a soberania territorial constituem no binômio fundamental para validar a existência do Estado nacional. Não causa grandes espantos, portanto, que uma das primeiras ações do recém-independente Império Brasileiro tenha sido a criação de um Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, ou que toda a política do jovem Estado de Israel baseie-se em seu suposto direito inato sobre as terras da Palestina, dado seu histórico (e mítico) passado enquanto nativos daquela região.

Discursando sobre a função social do passado, o historiador britânico Eric Hobsbawn coloca que parece ser um traço comum a diversas sociedade que o passado seja visto, essencialmente, como o padrão para o presente[1]. Novas gerações de uma coletividade costumam preservar quase tudo que as gerações mais antigas construíram, exceto quando se abrem “nichos” de novas oportunidades e necessidades sociais. São esses “nichos” que tendem a ser preenchidos com as inovações, que nem sempre estão livres do estigma de entrarem em conflito contra o que se tinha como tradicional. Nesse estranhamento entre o modo tradicional e a necessária inovação, os mecanismos da memória procuram encontrar o equilíbrio identitário do corpo social: mesmo as inovações acabam por ser incluídas na tradição como se fossem uma “redescoberta” ou um passo inevitável daquela sociedade em direção ao seu destino manifesto, e o que seria completamente novo é incorporado como parte integrante do antigo. Quando a sociedade atinge um ponto de ruptura, porém, a função da memória se altera. Não se enxerga mais o passado como o padrão mantenedor do presente, mas pode-se enxerga-lo como modelo para a elaboração de um novo presente, já que o vigente se encontra desmantelado pelas crises. Hobsbawn cita um interessante exemplo sob a forma do movimento zapatista durante a Revolução Mexicana na década de 1910. O desejo expresso pelos revolucionários de Morelos era o de apagar o período da ditadura de Porfírio Diaz e retornar ao status quo anterior a ela, das pequenas propriedades de terra controladas diretamente pela população campesina e por pequenos caudilhos, como o próprio Zapata[2].

Note-se que esse “retorno aos tempos áureos”, essa vontade de “colocar o trem de volta aos eixos”, dos quais fora tirado devido à ditadura porfirista é, na prática, impossível, não só devido à impossibilidade de repetição do mesmo contexto histórico, mas principalmente porque a própria memória coletiva a respeito da era pré-porfirismo está baseada não em uma real compreensão das características daquela sociedade passada, mas majoritariamente nas necessidades sociais do tempo presente que o porfirismo não conseguia preencher. O problema de distribuição de terras no México sob Porfírio Diaz era real e grave, mas era uma impossibilidade histórica demarcar exatamente as mesmas pequenas propriedades da era pré-porfirismo e retorna-las aos seus donos de direito, até mesmo pela inexistência de escrituras e documentos de comprovação. Em somatória, outras necessidades sociais surgiam dos restos do porfirismo, e o processo da Revolução Mexicana deveria lidar com todas elas em conjunto, não havendo condições para que um problema fosse cirurgicamente separado de outro. O processo revolucionário acaba por gerar um México totalmente novo, sem precedentes históricos, mas que, contudo, busca construir sua identidade a partir daquilo que a memória coletiva acredita ser seu passado de direito, e o Estado nacional mexicano constitui-se como sucessor lógico desse processo revolucionário ao apropriar-se dessa memória coletiva.

Sobre a memória coletiva apropriada pelos extratos dominantes constrói-se a História Oficial dos grupos sociais subordinados ao Estado nacional. Empresta-se, assim, o status de cientificidade à soberania nacional e aos clamores do Estado de ser o regente fidedigno dos indivíduos colocados, voluntariamente ou não, sob a égide da comunidade imaginária denominada “nação”: nação mexicana, nação brasileira, nação russa, nação francesa e assim por diante. Se, na época do absolutismo monárquico, o poder do rei encontrava no direito divino sua justificativa de mando, então na época do Estado nacional o poder se “racionaliza”, torna-se científico, embasando seu direito de mando no elenco de acontecimentos preservados vivos pela memória coletiva e tornados científicos pela autoridade da História Oficial. Como a memória não é uma entidade em si, mas uma construção identitária dos grupos sociais dentro de determinados contextos, seu embasamento se dá através de diversas manifestações de construção e preservação da identidade[3]. A religião é uma dessas manifestações, a arte é outra, uma vez que ambas expressam os desejos, ambições e temores que o grupo social carrega. A história também é uma manifestação de construção da identidade, mas o que não deixa de ocorrer com alguma freqüência é que a história, ao invés de assumir-se como um elemento de compreensão e formação crítica da memória coletiva, como uma questionadora da interpretação dos fatos moldadores da identidade social, acaba por tornar-se refém de uma formação acrítica da memória, um instrumento para a legitimação do tipo específico de identidade que o estrato dominante deseja projetar. A história torna-se História Oficial.

Contudo, talvez não seja possível transformar a história em um instrumento da preservação da memória oficial sem esvaziá-la de seus objetivos científicos. A história é uma prática que busca a análise crítica do acontecer humano. Como todas as metodologias que aspiram à cientificidade, a história precisa se comprometer na busca pela “verdade”, ou, pelo menos, na explicação mais coerente que os fatos e as documentações lhe permitam elaborar. Como ocorreu com outras ciências anteriormente, o compromisso da história na busca pela verdade coerente dos fatos a coloca, regularmente, em conflito com as versões oficiais que os órgãos encarregados da preservação da memória constroem, e a ciência histórica se vê, muitas vezes, na posição de desafiar e questionar os pressupostos da História Oficial. Isso porque o ato de elencar uma lista de acontecimentos que constituam as lembranças relevantes à formação identitária também consiste em fazer uma seleção daqueles acontecimentos que serão deixados de fora, relegados ao pó dos arquivos e ao poder devorador do tempo. Ou seja, a memória coletiva, e sua versão formal na História Oficial, consistem não apenas em uma rememoração de acontecimentos, mas também no deliberado esquecimento de outros acontecimentos que não forem considerados dignos de nota ou que, mais sombriamente, constituam um trauma social[4].

Por trauma social, entenda-se um acontecimento, ou conjunto de acontecimentos, que, por sua natureza extrema, despertam sentimentos de repulsa em uma sociedade como um todo, ou em grupos específicos dentro dessa sociedade que tenham visibilidade suficiente para se fazer notar. Exemplos notórios seriam o Holocausto para todos os povos europeus que o experimentaram, o 11 de Setembro para os estadunidenses e a escravidão no Brasil. Acontecimentos dolorosos como esses são frequentemente instrumentalizados pelos Estados nacionais, seja explorando-os de forma enviesada para insuflar paixões patrióticas, seja relegando-os às notas de rodapé da História Oficial de forma que o sangue que deles verteu não venha a manchar a construção do projeto nacional. Desta maneira, não deixa de causar, ao historiador, um misto de repúdio e divertimento ao deparar-se, em um museu, com uma cronologia da História do Brasil em que suas raízes africanas, européias e indígenas correm em linhas separadas até 1500, quando são magicamente transformadas em uma única linha contínua denominada “povo brasileiro”. Ora, todo o horror dos conflitos de terras e das práticas escravistas é convenientemente apagado por essa união mágica entre as três “raças”, constituindo, daí, a versão que o Estado nacional brasileiro procura oficializar de um povo miscigenado e desprovido de confrontos e contradições. É a seleção da memória e a História Oficial sendo escritas e transmitidas através de um museu (essa cronologia tríplice/unificada de fato existe: ela ocupa toda uma parede do segundo andar do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo-SP).

Assim, a ciência histórica agrupa entre suas aplicações a responsabilidade de questionar as prerrogativas da História Oficial quando esta se utiliza da memória coletiva para construir uma identidade para aqueles que pretende subordinar. A ciência histórica também se preocupa em preservar a memória dos acontecimentos, mas sua diferença com relação à memória coletiva é que ela busca explorar os territórios que o trauma social pode deixar intocados ou apenas parcialmente remexidos. A historiografia deveria não apenas manter viva a lembrança dos acontecimentos, de suas causas e conseqüências, mas também dar voz aqueles que a História Oficial inadvertidamente calou.

[1] HOBSBAWN, Eric J. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 22-23.
[2] Idem, pp. 26-27.
[3] POLLACK, Michael. Memória, Esquecimento e Silêncio. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, 1989, pp. 7-12.
[4] SILVA, Helenice Rodrigues da. Rememoração/Comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 44, pp. 430-433.

Nenhum comentário:

Postar um comentário